No dia 20 de janeiro de 1942, uma conferência de curta duração para decidir o extermínio sistemático de toda uma população ao longo dos anos foi realizada na região de Wannsee, em Berlim, por líderes do alto escalão do regime nazista da Alemanha em meio à Segunda Guerra Mundial.
O filme A Conferência (2022), dirigido por Matti Geschonneck, retrata o real e burocrático evento de planejamento do genocídio.
Desenvolvido como uma obra para a televisão, seria extremamente difícil assistir à produção em uma sala de cinema. Não porque é uma obra de qualidade ruim, muito pelo contrário, mas sim pelo fato de ser uma representação verossímil, narrativamente e esteticamente tão bem construída de um momento na história que, por sua vez, gera um grande desconforto, além de vergonha, repulsa e uma palpável decepção pelo ser humano e o que ele é capaz de fazer contra seus semelhantes.
A produção não é uma obra de ação física. Não contempla grandes cenas da guerra que estava sendo travada e nem mesmo conta com figuras que encenem o sofrimento humano das vítimas do ocorrido.
Não fosse um momento histórico tão importante e não fosse o conjunto carregado de tensões sofríveis, o que é demonstrado com frieza, ao mesmo tempo que com naturalidade, fidelidade e tão boa qualidade no filme, é um conjunto de homens burocratas, alguns líderes políticos e outros militares, interagindo em uma sala de reunião e debatendo números, seus próprios egos, histórias e estratégias que levariam ao assassinato de mais de 11 milhões de judeus.
Como julgar a qualidade de uma obra cinematográfica sobre o Holocausto judaico estritamente avaliando o caráter técnico da produção do filme sem automaticamente atribuir todos os pesos negativos dos próprios fatos ocorridos durante Holocausto judaico?
Ainda que o filme não seja o primeiro do a tratar desse assunto, é um dos vários que levanta essa noção de cuidado ao espectador.
É sempre um trabalho difícil desvencilhar e diferenciar a análise sobre a dramatização de um ocorrido tão terrível na história humana dos fatos verídicos a que ela representa, mas é algo possível e necessário de ser feito.
Sempre há certos detalhes dessa conexão que não podem ser separados, mas pelo rigor técnico relativo à análise de uma produção cinematográfica, independentemente do assunto tratado, aspectos principais como a atuação do elenco, a ambientação cenográfica e do figurino, fotografia, sonoplastia, edição do fluxo e das cenas da narrativa, dentre outros crivos de ficção e dramatização do roteiro serão abordados individualmente e com sobriedade.
O autor desse texto admite que assistiu ao filme em um serviço de streaming, realizando várias pausas para poder digerir as terríveis falas que se seguiam durante cada cena. Isso não se dá ao fato do roteiro ou da edição transbordarem um absurdo sem qualidade para os espectadores, mas sim ao fato do assunto real histórico a que o roteiro da dramatização se refere ser o absurdo, angustiante de acompanhar durante tanto tempo.
A naturalidade como o roteiro contempla os diálogos e ações registradas do evento demonstra a sobriedade e a justa intenção em simplesmente representar as horas de duração da conferência real com fidelidade, sem interferir criando pausas dramáticas que jamais aconteceriam de verdade naquele momento ou intervalos artificiais, além dos que realmente ocorreram, apenas para permitir uma análise ou criação de juízo de valor.
Ficcionalizar qualquer fala ou efeito cinematográfico de transição de cena apenas para permitir o processamento das emoções do público seria um ato complexo de fugir à fiel demonstração, tirando o mérito da imparcialidade da produção. O filme faz bem em abordar a naturalidade como os assuntos eram tratados pelos envolvidos, mesmo que sejam assuntos vis e obscenos em muitos sentidos.
Ainda assim, considerando o peso e até a velocidade de fala dos participantes, teria sido útil permitir pelo menos alguns minutos espaçados entre certos conjuntos de falas para a melhor compreensão do espectador em meio à tensão.
Na história real, assim como no filme, a conferência ocorrida na região de Wannsee, em Berlim, teve pouquíssimas horas de duração. Nem todas as tratativas se resolveram ao fim do mesmo evento, mas ele marcou o planejamento principal do que foi chamado de “Solução Final para a questão judaica”, o genocídio deliberado de todo o povo judeu da Europa, além de ligações com o extermínio de outros povos considerados “desagradáveis” ao regime nazista.
Seguindo o rigor e a formalidade de uma conferência que tem hora marcada e cronometrada para expor e tratar de cada assunto, assim como definição dos lugares onde cada um deve se sentar, momentos definidos para pausas e para que os convidados apreciem as comidas e bebidas do cardápio suntuoso, o espectador é transportado para esse rápido período na história que decidiu o destino da vida de milhões de seres humanos, com apatia e frieza para tratar dos detalhes mais perniciosos e criminosos.
Tal como ocorreu em eventos denominados meramente burocráticos por participantes de assuntos políticos, econômicos, militares e jurídicos, a conferência foi friamente contemplada com discussões egocêntricas sobre quem era a figura mais importante da sala, quem era o homem com maior patente, além de alguns trocadilhos que eram, estranhamente, considerados naturais.
A aflição e o terror para o público jazem justamente na boa estruturação desse fluxo natural da condução dos momentos do evento e do conteúdo nos diálogos entre seus envolvidos.
Cada elemento da produção é cuidadosamente trabalhado para permitir essa imersão do espectador. Mesmo ocorrendo em um ambiente pequeno, as falas da narrativa levam o público aos maiores e mais distantes locais de atenção, recordação e imaginação não apenas por seu conteúdo, mas pela ótima atuação do elenco e pelo jogo de câmeras que segue aproximando das figuras por ângulos onde você se sente ali com eles, ao mesmo tempo que intercala em visões mais amplas dos diferentes espaços, flutuando pela imensidão daquele grupo, dando foco na ação coletiva que eles elaboravam e no desdém que cada um fazia do outro.
Cada olhar sugestivo, inclinação na cadeira, descasos com o desrespeito à ordem das patentes dos oficiais, poses falsas de superioridade, deboches, dúvidas numéricas, piadas preconceituosas e até irritações com a perda de foco durante o rumo da reunião por parte dos atores promove à crença na naturalidade de tais ocorridos.
Em dados momentos, é quase possível se esquecer da pauta vil do encontro e se impressionar com o suspense e humor ácido promovido pela briga de egos e discussões estratégicas dos envolvidos, e pelos irônicos ares de superioridade de alguns outros, como em uma indiferente e inocente reunião burocrática qualquer. O que é extremamente perigoso no aspecto social.
Há chance de algum desavisado considerar forçada, apática em excesso ou até fervorosa demais algumas das atuações dos membros do elenco, mas ao considerar quem eram as pessoas envolvidas no acontecimento real, é até surpreendente como a caracterização foi tão bem elaborada.
Philipp Hochmair que interpreta Reinhard Heydrich, atua com exímia propensão à condescendência, influência e até sedução que o ágil e egocêntrico militar alemão e pomposo anfitrião do evento possuía em vida.
Johannes Allmayer traz uma assustadora semelhança aos comportamentos descritos e gravados de Adolf Eichmann. Um homem de pouca expressão, direto em suas falas, com altas habilidades em gestão e supervisão, e que tratava com trivialidade as informações sobre a violência e ao mal contra outros seres humanos.
Durante o julgamento televisionado no ano de 1961 dos crimes cometidos por Eichmann durante a guerra, a filósofa política alemã de origem judaica, Hannah Arendt, presente durante o julgamento do nazista, se aprofunda no comportamento de Eichmann e em seus feitos para descrever o que foi cunhado como “a banalidade do mal”.
Distante de qualquer minimização dos perigos e crimes, a “banalidade do mal” é a presença rotineira, a constância e a simplificação à nível de mediocridade e frivolidade das atitudes de perpetrar o mal que o ser humano pode fazer com tamanha naturalidade e sem importância.
Sem uma índole maquiavélica que se deleita visualmente com a violência e a barbárie, os indivíduos seguem suas rotinas de modo simples e frívolo, tratando como banal e corriqueiro um conjunto de ações que causa o mal a outras pessoas.
O conceito indica que nem todo o crime, por mais cruel que seja, se liga a uma forma prazerosa de sadismo ou algo que reflita para o perpetrador qualquer desejo exagerado de distinção entre o bem e o mal. É algo para ele considerado tão comum e vazio de necessidade de se pensar a respeito, que é exatamente o ponto mais perigoso para a sociedade, de o mal se instalar e seguir executando seus crimes.
O próprio termo cunhado por Arend tornou-se, infelizmente, banalizado nos últimos anos dado o terrível aumento de comparações justas e injustas dos horrores já comprovados do Holocausto à novas atrocidades recentes e à outras ações bem menores cometidas pela humanidade, banalizando e desmerecendo as lições e eventos históricos.
Entretanto, é por essa e outras representações presentes no longa, além da semelhança estética trabalhada no figurino do elenco e na construção do espaço do ambiente em Wannsee onde ele se encontrava que o filme A Conferência é um diferente e necessário filme sobre fatos ligados ao Holocausto.
A ausência de uma trilha sonora emotiva promove maior atenção às falas e às ações dos personagens, e o silêncio que se houve nos momentos certos preenche o vazio dando o ar frio e terrivelmente realista de tais acontecimentos.
Cada pequeno suspense criado quando o espectador pensa que algo vai impedir a continuidade do plano ou que haverá a aparição de um mínimo ato de heroísmo após as dúvidas de intenções dos personagens, mesmo dentre as figuras claramente criminosas do evento, se desdobra na entrada sequencial de mais um fator absurdo no plano genocida que foi seguido.
Quando alguém imagina que a expressão de descaso observada em certos personagens ocorre pelo horror aos crimes que se planejam efetuar contra a vida de seres humanos, na verdade, se surpreende com o fato de a intenção ser, na verdade, puramente por fatores econômicos, de ego de cada um, do desejo de criar um plano ainda mais maldoso, ou de excesso de trabalho que as figuras ou querem se livrar ou então assumir para si em seus desejos pessoais de subida nas posições do governo.
Ver e ouvir durante quase 2 horas as barbáries proferidas pelos personagens sobre o plano que se instaurava, além dos casos de assassinato sistematizado que já aconteciam antes mesmo daquele fatídico dia é realmente difícil de se processar e de acreditar. Contudo, a importância e a qualidade dessa produção estão justamente na veracidade histórica do que ela nos apresenta, e na sobriedade como ela aborda o ocorrido que, mesmo comprovado, ainda é impensável pela crueldade e banalidade na história humana.
Uma reunião com direito à boa comida e bebida, um ambiente de luxo, indiretas ácidas e fatos tratados com normalidade e que se complementavam para promover, de forma sancionada, uma atrocidade contra milhões de vidas humanas por todo um continente.
A fotografia da obra não deixa a desejar. O tom frio, porém com alta nitidez que as câmeras capturam serve tanto para a apresentação visual da gravação quanto para o próprio aspecto histórico das informações e fatos trocados pelos personagens no evento em si.
Como o filme e a história nos mostram, a erradicação das pessoas do povo judeu, tratado como algo pior que uma praga inumana, chega a ser mais importante para a liderança do regime do que a vitória militar, econômica e territorial da própria guerra travada contra os outros países. Correndo o risco de perder uma disputa bélica por terras e recursos, os criminosos não se pouparam e empenhar seus esforços contra a população inocente a quem julgavam como inimiga e alvo principal de todo aquele período histórico.
Como é documentado, todo o Holocausto judaico, bem como a Conferência de Wannsee por sua vez, são detalhadamente registrados por fotografias, filmagens, documentos de texto, relatos dos envolvidos e outras comprovações irrefutáveis.
Há uma frase especialmente explícita e impactante dentre a várias do longa que parece ser uma das únicas criadas puramente pela artificialidade e dramatização para o espectador, o que é feito com maestria, mesmo que em um momento tão curto. Como o personagem profere: “assim, eles não terão como dizer que não sabiam”. Isso é dito em um momento em que se fala do detalhamento dos documentos que registram as informações, os acordos e as pessoas envolvidas na reunião.
Chega a parecer mais uma coisa impensável dentre as várias outras executadas durante essa conferência, entretanto, é uma das poucas situações geopolíticas em que os criminosos produzem e armazenam, intencionalmente, tantas provas contra si próprios sobre os crimes terríveis que eles cometem.
Não fossem essas documentações, as várias tratativas históricas sobre o Holocausto não poderiam ter sido analisadas, e nem mesmo esse filme poderia ser tão feito com tanta riqueza de detalhes e fidelidade.
É um filme de altíssima qualidade sobre um evento de caráter absurdamente terrível e que quase todos rezariam para que nunca tivesse ocorrido na vida real.
A realidade humana, muitas vezes supera qualquer absurdo das obras de ficção. A Conferência (2022) é uma obra que retrata com perícia um evento absurdo que ocorreu na realidade.
A Conferência (2022) | Global Screen
NOTA: 9/10
- Gabriel Tessarini