Assassinos da Lua das Flores (2023) - Crítica
O que o ser humano é capaz de fazer, independente de quem ele seja
Antes dessa obra, talvez um dos poucos filmes monumentais que continha um único momento de paz e luz antes de todo o horror que viria para quem assistisse à produção baseada em fatos reais, assim como uma singela homenagem ao final, ao mostrar as pessoas que sobreviveram e “venceram” as atrocidades cometidas contra si, fosse A Lista de Schindler, dirigida por Steven Spielberg em 1993.
De forma similarmente magistral, o cineasta norte-americano Martin Scorsese nos traz um retrato da perversidade humana que se implementou na década de 1920 por entre salafrários e sedentos pela riqueza do petróleo nas terras de membros da tribo indígena Osage nos Estados Unidos.
Após terem os seus direitos à posse de terras assegurados pelo governo, os membros da comunidade Osage se encontraram na posição de uma das comunidades mais ricas do mundo com a descoberta e a posse de petróleo em suas regiões.
Com tanta riqueza, a influência, a enganação e a cobiça do homem branco logo deram onda a uma mudança cultural significativa em como os indígenas viviam os seus princípios e suas vidas, sendo nitidamente corrompidos pelos padrões de desejo, vestimenta e moradia demonstrados viciosamente a eles pelas comunidades brancas dominantes da região.
Algo que só não foi pior do que a onda sistemática e premeditada de assassinatos silenciosos, com alguns outros mais estrondosos, cometidos contra os Osage.
Com um elenco tão talentoso quanto renomado por premiações da indústria cinematográfica, em um tempo de duração em tela que prova que as pessoas não precisam a todo o momento de velocidade e conteúdos de curta minutagem em suas vidas, mas sim de conteúdos de real qualidade, Assassinos da Lua das Flores, baseado no livro homônimo lançado em 2017 sobre os crimes estudados por David Grann, é uma obra cujo visual encanta os olhos, ao passo que o conteúdo te contrasta diferentes emoções, incluindo angústia, incredulidade, admiração e esperança.
Só a história é capaz de nos mostrar o nível da gravidade de determinadas situações e períodos, e o que essa história nos mostra é que enquanto ela ocorria, houve inúmeras ocasiões de impedi-la. Os maiores motivos por terem continuado a se perpetrar podem ser identificados como a ignorância e a cobiça do ser humano.
Na obra, esses dois diferentes motivos são interpretados principalmente e respectivamente por Leonardo DiCaprio e Robert De Niro, com exímia habilidade.
Um dos vários pontos altos do filme – estranhe você ou não – é um momento que nunca acontece. Esse momento inexistente é o que dividiria, para o espectador, o herói do vilão. É com uma perniciosidade e uma dissimulação tão soberba que o personagem não-ficcional interpretado por Robert De Niro, William Hale, encanta e engana aos demais personagens da obra com tamanha naturalidade, na mesma medida que ao público que a assiste na tela.
Veja bem, há diálogos e cenas inteiras na produção que exibem explicitamente as atividades maliciosas e criminosas de William Hale (De Niro), mas mesmo no início do longa quando há acordos e tomadas de decisão claramente conspiradoras, tudo é feito com um tom de voz, expressões faciais e escolhas de palavras tão cuidadosas e sem atritos que só um verdadeiro político ou um ilustre ator como De Niro em uma direção de Scorsese poderia te deixar em dúvida a julgar ou não as intenções e a convicção criminosa dos personagens e acontecimentos.
Não obstante as falcatruas deliberadas de William Hale, o mandante de assassinatos ainda se voluntariava a apoiar a população acometida por seus próprios crimes com a mesma eloquência e carisma que se reservam aos serial-killers. Tamanha experiência no cinema não apenas não cansou a desenvoltura do grande ator Robert De Niro, como parece que a aperfeiçoou ainda mais.
O personagem de DiCaprio, Ernest Burkhart, sobrinho de William Hale na história, por sua vez, surpreende pela mesma dissimulação, mas esta causada mais pela ignorância do que pela astúcia.
Como um pau mandado, um brigão longe de ser uma figura elegante, ainda que seja uma figura de aparência distinta para os padrões da época, Ernest (DiCaprio) e seu irmão se envolveram com seu tio, quase que endeusado e apelidado de “rei”, em uma longa trajetória de tramar contra famílias indígenas Osage, chegando a casar-se com suas mulheres e arquitetar a morte dos membros da família até que os criminosos se tornassem os únicos herdeiros vivos do direito às terras e suas riquezas naturais.
A vilania era tanta que muitos dos homens exibidos no longa chegaram a arquitetar a morte de seus próprios filhos com as moças Osage com a finalidade de serem os detentores das terras e suas preciosidades.
DiCaprio segue bem em seu papel como um sedutor até que convincente, mesmo que com carência de eloquência, manipulado pelas cordas de seu idolatrado tio mesmo em momentos que tentava se livrar dele, assim como agindo por conta própria em seus próprios crimes contra a comunidade indígena e seus próprios familiares.
O desempenho do ator não se qualifica como um dos mais bem executados ou memoráveis, mas isso é proporcional à própria desenvoltura de seu personagem ligeiramente desengonçado. Ainda que não se iguale à habilidade de De Niro nessa produção, DiCaprio age bem em suas contrastadas e até hipócritas expressões e momentos no longa, embora nenhum dos dois alcance a real e surpreendente estrela desse filme, Lily Gladstone.
Interpretando a mulher osage Mollie Burkhart, vítima e uma das denunciantes dos assassinatos cometidos na década de 1920, a atriz norte-americana nascida e criada na Reserva Indígena Blackfeet impressiona pela astúcia de sua personagem batalhadora e por sua encantadora atuação.
Diante de tantos crimes contra sua comunidade, tantos olhos aproveitadores e cobiçosos sobre suas posses e a posse de seus familiares, e ainda enfraquecida por suas próprias condições, a personagem de Gladstone enfrenta, vive e sobrevive à variadas tentativas de atentado contra sua existência sem perder a força de ir lutar pela existência de seu povo e pela atenção e proteção que devia ser dada a ele, não fosse o emaranhado de tramoias, pactos e subornos correndo no sistema.
Tendo tirada de si a família, os costumes e a própria saúde, mesmo quem nunca sequer passou por algo assim pode sentir o tamanho da angústia e da força emanando da figura feminina graças à habilidade de Gladstone em representar e transmitir isso tão bem para os espectadores que torcem por sua vitória.
Ainda que seja uma obra de roteiro longo, porém necessário, e com ilustres figuras do cinema, incluindo também Tantoo Cardinal, Louis Cancelmi, John Lithgow, Jesse Plemons, e Brendan Fraser (mesmo que esses últimos não tenham tanto tempo de tela quanto o trailer e a divulgação do filme demonstram), Assassinos da Lua das Flores é um filme mais rico ainda se formos considerar a ambientação temporal, a estética visual e sonora desenvolvida na produção.
Um destaque especial para a imponente, iluminada e inacreditável cena de queimada do pasto ao final do longa.
Os cenários naturais, as vestimentas das personagens, os estabelecimentos comerciais das cidades, e até detalhes que poderiam passar desapercebidos como o volante dos carros, velhos alambiques, as armas dos criminosos, e outros, são um deslumbre artístico que te fazem imergir sensorialmente e quase lhe permitem viver naquela época e até desejar isso, se não fosse pelas atrocidades cometidas pelas diferentes personagens envolvidas nas situações daquela região.
A homenagem e o respeito à cultura indígena Osage fazem parte da produção de uma maneira tão bela e natural que mesmo em momentos de luto são permitidos alguns alívios ao espectador para admirar essa beleza, assim como leves momentos de respeito à pausa do sofrimento sistemático imposto à comunidade.
Uma atenção especial ao significado da coruja e à comovente cena de libertação vinculada à passagem para a outra vida da matriarca da família, Lizzie Q (Tantoo Cardinal).
O filme mostra, assim como muitos outros filmes históricos, o que o ser humano é capaz de fazer para o bem e para o mal, mesmo quando o próprio ser humano não se divide tão nitidamente dessa forma, independentemente de sua cultura.
Chega até a ser irônico, para não dizer hipócrita, como o filme pomposo, repleto de mensagens, exuberante – e caro – como ele é, pode ser feito com todos os seus atributos de entretenimento, estudo, homenagem, avisos e reflexão, causado principalmente pelos desejos e recursos de infraestrutura capitalista da comunidade cinematográfica norte-americana ao querer conquistar algo digno de vastos lucros usando a imagem dos povos originários, da mesma forma que é a história exibida no longa.
Perceba, a obra não se apropria ou explora a cultura Osage para fins próprios. Scorsese, o roteirista Eric Roth e outros membros da produção, incluindo o DiCpario, permitem muito bem a criação e a condução da obra com vários membros descendentes das comunidades indígenas em território americano de um modo inclusivo e justo – ao menos aparentemente – mas ter membros que fazem parte da comunidade histórica dominante e exploradora lançando um filme sobre o povo assassinado e explorado por seus antepassados é algo que por si só é um contraste e um ciclo que chama atenção.
Assassinos da Lua das Flores é um filme monumental. Tanto em qualidade da obra quanto em sua mensagem, mesmo após a subida dos créditos, a obra de cinema é uma espécie de monumento erguido para representar um período terrível e homenagear aqueles que lutaram para impedir que os crimes cometidos continuassem a se perpetrar.
Como em muitas outras situações históricas em que os perseguidos sobreviveram e são, por si só, um monumento, e o fato de terem conseguido isso é uma mensagem de vitória para esfregar na cara daqueles que tentaram os dizimar, o longa demonstra que o número de sobreviventes e herdeiros da cultura pode não ser tão grande quanto poderia e deveria, assim como o filme que, mesmo com suas quase 4 horas de duração, é tão absorvedor que te faz desejar e imaginar o que mais ele poderia mostrar.
Assassinos da Lua das Flores (2023) | Apple Studios
NOTA: 9/10
- Gabriel Tessarini