Avatar: O Último Mestre do Ar (1ª Temporada – 2024) – Crítica
Uma prova do que o poder é capaz
Quais são os elementos necessários para se conquistar a grandeza? Dentro do universo fantasioso de Avatar, eles são água, terra, fogo e ar. Agora no contexto da produção artística em versão live-action da obra, lançada na Netflix, são fatores menos naturais, mas primordiais e que alcançam seu objetivo.
A série é uma adaptação respeitosa e criativa com atores reais da aclamada animação “Avatar: A Lenda de Aang”, lançada em 2005, ganhadora de diversos prêmios ligados à animação para televisão. Não é a primeira obra do gênero, dado que o renomado diretor M. Night Shyamalan já fez uma adaptação do gênero com um filme lançado no ano de 2010, não agradando a maioria das críticas.
Mais do que uma animação que perdura no imaginário popular e nos serviços de streaming até hoje, a série original do Avatar também se desenvolveu em uma sequência de livros e publicações de quadrinhos que contam com a participação dos criadores da série, além de jogos digitais e uma continuação direta intitulada “Avatar: A Lenda de Korra” (2012).
Assim como foi a tentativa lançada em 2010, fazer uma versão live-action de uma obra animada tão bem consolidada, ainda mais em um modelo de série com uma quantidade menor de episódios e atores jovens que amadurecem rapidamente, é um desafio complexo.
Como respeitar e manter o que tanto agradou aos fãs ao mesmo tempo que permitir que novos espectadores sintam-se surpreendidos e agraciados da mesma forma, com um ar maior de sobriedade?
Como adaptar para uma versão em live-action, em tempo hábil, uma história visualmente admirável, com núcleos narrativos que permeiam desde laços de amizade, o distanciamento da família, a autodescoberta, o amadurecimento e a responsabilidade com os outros até as questões geopolíticas da guerra e do extremismo ideológico, além do surgimento de interesses românticos na juventude?
A resposta não é única e nem mesmo fácil, mas a primeira temporada da série Avatar: O Último Mestre do Ar (2024) conseguiu resolver tal questão com elementos que podem ser resumidos em uma mesma categoria: poder.
Além dos quatro elementos que os personagens ficcionais podem “dobrar”/controlar basicamente com a força do pensamento e o poder místico do qual alguns são dotados, a série em si é uma obra sobre “poder”.
O poder de um bom elenco.
O poder de uma trilha sonora bem orquestrada.
O poder de uma fotografia encantadora e caracterizações intrigantes.
O poder de efeitos visuais de alta qualidade e de cenas de ação excepcionalmente bem coreografadas.
O poder da boa releitura de um roteiro tão icônico, seguindo à risca arcos da história mais infantis e outros bem mais maduros, mesclando-os com complementos inéditos que enriquecem e tornam a narrativa ainda mais justificável para um público amadurecido.
A primeira temporada da animação original durou 20 episódios. A nova adaptação lançada na Netflix conta com 8. São apenas 8 episódios que buscam condensar uma riqueza de detalhes e narrativas para provar aos fãs fiéis a alta qualidade que a produção consegue conquistar, bem como garantir a atenção e aceitação dos que estão conhecendo a história pela primeira vez.
Algumas tramas passam pela tela com uma intensidade menor, mas são compensadas pela maior de certos fatos e das motivações de personagens chave, gerando muito mais clareza e embasamento para arcos na história, empatia e um entendimento melhor de cada figura.
Conspirações mais profundas do que na animação são desenvolvidas promovendo um crescimento significativo na trama dos personagens que inicialmente tinham menos grandeza. Do mesmo modo, os arcos narrativos naturalmente com peso maior tornam-se, gradativamente, ainda mais surpreendentes, críveis e impactantes dentro do grande universo diante dos personagens e para o próprio público espectador.
A ascenção profissional e social, os traumas emocionais e a desconstrução de certos mitos intrinsecos para os personagens são apresentados com uma construção narrativa de ótima qualidade, apoiada pela caracteriação e a multifacetada atuação do elenco, sem tirar os bons momentos de diversão que tambem recheiam a obra.
Parte dos acontecimentos, que ocorrem em episódios distintos na animação se encontram condensadas em um mesmo episódio da série live-action. Alguns personagens de episódios e até temporadas diferentes da animação são posicionados com outros pesos em participações na temporada atual.
Nem mesmo esse agrupamento de histórias ou personagens distintos é capaz de causar dúvidas ou diminuir a obra. De fato, ter mais episódios, um para cada elemento narrativo aglutinado, seria muito mais encantador para o público dada à ótima forma como a série é construída. Ainda assim, são núcleos artísticos tão bem amarrados que fazem total sentido estarem condensados nesse novo formato em uma mesma narrativa no mesmo episódio.
Cada episódio conta com núcleos originais e outros inovadores de ação e suspense bem conectados e relevantes para o avanço da história e o amadurecimento dos personagens, posssuindo o mesmo aspecto de entretenimento e reflexão da animação original, mas tambem até mais sentido e justificativa para o espectador sobre certas tramas.
Diferentemente da obra original, determinados acontecimentos mais místicos e trazidos em cena como soluções mágicas, assim como personagens puramente vilanescos desde o início, agora contam com mais elucidações sobre o porquê e como ocorrem, sobre a construção das personalidades e sobre quais as consequências a longo prazo para a história das figuras. Contudo, isso não chega a alterar a essência da obra original que praticamente obrigou a criação de novos projetos devido a maravilha intrinseca que gera os seus numerosos fãs.
Os arcos de personagens como Zuko (Dallas Liu), Azula (Elizabeth Yu) e Iroh (Paul Sun-Hyung Lee) são destaques dentre as narrativas de origem. Uma citação especial para Daniel Dae Kim que interpreta um pai vil e um Senhor do Fogo Ozai importante como o original, mas agora mais realista, imponente e assustador.
A série inclui em sua primeira temporada um pequeno conjunto de detalhes que são, originalmente, de outras temporadas da animação original, alguns de outros que são oriundos das publicações em quadrinhos feitas ao longo dos anos, além de arcos narrativos que são aprofundados na continuação da animação, “A Lenda de Korra” (2012), o que aproveita para completar a origem e as explicações de diferentes trechos das narrativas, fornecendo minúcias ainda mais compreensíveis e agradáveis.
Contando com “retalhos” vindo das outras versões da história inicial e, claro, com várias adições inéditas da criatividade dos roteiristas, a obra é capaz de costurar uma produção admirável e fiel aos conteúdos que prenderam a atenção e a alegria de seu público cativo, e ainda embasar alguns acontecimentos e relacionamentos com muito mais propriedade e sobriedade do que se presenciava na animação anterior.
Quem faz parte do grupo de fãs históricos da animação pode julgar, de início, essas alterações como um desserviço. Contudo, ao assistir à obra, ficarão no mesmo nível de um espectador novo. Ficarão tão entretidos com a boa forma com que a história de desenvolve na prática que não se preocuparão mais se é uma cena original ou adaptada da animação, apenas para focar no pensamento sobre como é uma narrativa e uma produção de ótima qualidade.
A primeira temporada poderia sim contar com mais episódios, mas esse anseio não é pelo fato de precisar de mais tempo para explicar algo que ficou pendente para público, e sim por serem episódios tão envolventes que deixam o espectador desejando ainda mais, mesmo após a finalização adequada de cada arco.
Todas as tramas ligadas às consequências provocadas por guerras e ideais extremistas presentes na animação original de uma forma ímpar são devidamente transpostas para o live-action sem qualquer exagero, mas com um aprofundamento sóbrio que demonstra logo no início a justificativa, a tensão e a importância de vários outros fatores subsequentes.
O elenco possui carisma e jornadas de amadurecimento impactantes da mesma forma.
Como cada personagem lida com esses fatos sombrios e maduros é algo tão bem explorado em suas atuações em cena quanto os momentos de maior descontração, alívio cômico e fantasia. A série diverte na mesma proporção que promove momentos adequados para refletir sobre sua profundidade e tensão.
Em posse de artes gráficas e efeitos especiais que não deixam a desejar, a obra traz cenas de luta, fuga e conflitos com poderes místicos fantasiosos com tanto crivo e maestria, que se não fosse o absurdo que seria realizar isso na vida real, faz acreditar na impactante maneira como os personagens se empenham.
A coreografia dos personagens, suas caracterizações, a vivacidade alegre e adequqda das cores utilizadas e todo o jogo de cena evoca para o espectador a crença de que figuras tão jovens podem mesmo ser mestras de suas respectivas artes de luta dada a ótima movimentação dos personagens e da edição das cenas filmadas. Momentos de tensão, suspense e até de luto correm na mesma imponência que suas reviravoltas que entonam a alegria e o carisma dos personagens.
Todos os cenários, sejam em ambientes internos como o palácio de fogo, cavernas ou cabanas até as cenas externas vibram com a paleta de cores da ambientação e dos figurinos que mesmo a obra sendo um live-action, em certos momentos, promove tanta imersão e contraste que te faz sentir assistindo à animação original, um feito visual muito bem executado. Da mesma maneira, locais e situações sombrias e carregadas criam um efeito de encantamento ao espectador.
Justamente por enriquecer cada arco narrativo variado dentro da história que deve se apressar para ser contada em apenas 8 episódios na primeira temporada, e lidar com o envelhecimento dos atores que deverão participar das próximas temporadas, a produção poupa um pouco do espaço de traços de personalidade de seu protagonista, além de momentos significativos para a construção do senso em equipe.
Gordon Cormier, interpretando o protagonista de 12 anos, Aang, traz um carisma muito grande para o personagem nas diferentes situações em que emoções tão opostas devem ser experimentadas dado o início trágico de sua história de responsabilidade perante o mundo junto a perda de toda a sua nação, em contraste com a alegria tão natural de sua figura. Ainda assim, a produção economiza de forma errada na exibição de momentos que transpõem a diversão intrínseca do personagem.
Como um garoto de alma leve, divertido, extremamente poderoso, mas ainda infantil e levemente atrapalhado, o personagem de Aang demonstra no live-action todas as suas características de forma louvável graças ao empenho de seu ator mirim, mas enquanto parte dos detalhes é justificada apenas em rápidas falas e trocadilhos cômicos do personagem, algumas cenas de maior apresentação da alegria do jovem fazem falta na caracterização do personagem.
Não se limitando ao indivíduo em si, o ilustre “time Avatar” que conta com os demais integrantes vitais para a obra tem menos momentos juntos em cena do que poderiam. As tramas vividas em conjunto são muito bem executadas, mas os momentos de pura liberdade e amizade entre os indivíduos são poucos, deixando a justificativa do porquê eles são tão amigos menos clara do que poderia ser.
Não fossem esses detalhes marcantes como pontos pendentes na série, ainda que não sejam necessariamente vitais para a sobrevivência da obra – ao menos durante essa temporada – a série é construída em quase todos os sentidos com uma qualidade impecável.
Se as próximas temporadas não contarem com esses detalhes que estão ausentes, não serão exatamente “perfeitas”, mas assim como os episódios da primeira temporada, são uma das poucas coisas realmente próximas à perfeição que podemos assistir nesse ramo de live-actions de séries animadas.
Se as próximas temporadas não contarem com esses detalhes que estão ausentes, ainda assim, elas vão precisar ter muitos episódios pois é difícil ficar tanto tempo sem os conteúdos de excepcional qualidade como os trazidos pelo showrunner Albert Kim e sua equipe nesse sucesso lançado pela Netflix.
A essência de uma animação juvenil, que mesmo na época já continha horrores surpreendentes sobre o que as pessoas são capazes de fazer para o mal, para o bem e para o puro divertimento de seus espectadores, é mantida e enriquecida ainda mais com os novos detalhes criativos e o poder do elenco bem empenhando nesse louvável live-action maduro.
Os figurinos, o desenvolvimento de seus personagens, os arcos narrativos, as paisagens, a ambientação musical e a excelente coreografia dos jovens que devem simular exímios mestres de luta – algo fácil em uma animação, mas difícil em um live-action – evocam a mágica que o mundo fantasioso de Avatar possui e a mágica poderosa que o conjunto de bons elementos artísticos, quando reunidos e executados com profissionalismo na produção de uma série para streaming é capaz de fazer.
Avatar: O Último Mestre do Ar (1ª Temporada – 2024) | Netflix
NOTA: 9/10
- Gabriel Tessarini