O Diabo de Cada Dia (2020) - Crítica
Escolhas, extremos e seus encontros contrastantes
Mesmo com uma corda, talvez não fosse possível amarrar tão bem os núcleos da história dessa adaptação da Netflix quanto o roteiro é capaz de fazer.
Baseado em um livro homônimo de Donald Ray Pollock, dirigido pelo diretor meio-brasileiro, Antonio Campos, e com grandes nomes no elenco, O Diabo de Cada Dia nos impressiona com o equilíbrio entre a linearidade e o fluxo cíclico de seu sórdido suspense.
Com a mistura do fanatismo religioso e do hedonismo no centro da obra, a história se desenlaça com uma série perturbadora de terríveis escolhas e suas consequências com características superiores.
Envolvendo guerras travadas entre os homens e com o próprio Deus, independentemente da religião ou da falta dela, como visto em um os personagens do filme, o prazer luxurioso ou o sentimento de satisfação pela rigidez dogmática de uma crença superior formam paralelos nitidamente contrários, mas com um encontro inevitável.
No roteiro, um soldado volta para casa, atormentado pelos terrores da guerra. Em determinado restaurante, encontra o amor de sua vida em uma garçonete que é solicita aos apelos dos necessitados. No mesmo local, um fotógrafo aventureiro e perfeccionista se depara com outra apaixonante e sedutora garçonete atraindo-a com sua harmonia.
Um perderá a esposa para um câncer após súplicas brutais a Deus, com direito à sacrifícios e abusos rogando que o fizesse desaparecer, e o outro iniciará uma onda de voyeurismo atrelado à assassinatos brutais por muitos e muitos anos.
Como fruto de um desses encontros, temos a figura do jovem rapaz abusado pela religiosidade falha, fervorosa e de pouca duração de seu pai.
Paralelamente, temos a órfã moça que se entrega à adoração de um pastor exagerado e temente a Deus com toda sua hipocrisia. Em mais um encontro despretensioso entre religiosos, temos a insanidade e a descrença surgindo do excesso de crença levando a um assassinato e à outra garotinha órfã, como no ciclo de sua própria mãe.
De encontro a essas duas crianças, ocorre o crescimento de uma relação pura entre irmãos de criação, logo afetada fatidicamente por mais um pastor que emerge à frente de sua falsidade e sedução.
Na produção, a todo o momento, somos apresentados à acasos do destino e a escolhas ativas das personagens sobre suas ações e acontecimentos. De qualquer maneira, decidindo agir ou sendo coagido a tal ato, não há um único “santo” ou inocente que não seja vítima de suas próprias ações em nenhuma região de encontro das duas cidades americanas ambientadas na obra.
Nem mesmo a pobre vítima de um suicídio que não era para ter ocorrido pode manter esse título por muito tempo. As ações que levaram a esse fim foram não só aceitas como a corda foi literalmente suspensa e amarrada em seu pescoço por suas próprias mãos.
Com alegrias passageiras e perturbações extensas durante toda a trama, praticamente sem descanso para tamanha aflição infligida a seus protagonistas e coadjuvantes, as atuações de seu elenco podem realmente te fazer acreditar que tanto sofrimento ou apatia a ele esteja realmente sendo sentido por todos. Talvez nem tanto para a atuação de Robert Pattinson que não parece saber muito bem o tom do papel a que está interpretando até os últimos momentos.
Ao final do filme, ocorre mais um encontro entre os extremos cíclicos da obra. Dois homens amargurados pela perda de suas respectivas irmãs. Nenhum inocente, mas sendo um mais mal intencionado do que o outro, se reencontram no primeiro lugar onde foram conectados em suas vidas. Dessa vez, pela mesma motivação, mas com propósitos intensamente distintos.
Com um chegando para matar e o outro tentando apenas viver, fazendo tudo a seu alcance para isso, mais um conjunto falho de escolhas e atitudes pessoais é conectado nesse conjunto de histórias em que, aparentemente, não há nenhuma ligação, e com certeza, não há nenhum benefício.
Uma energia crescente que não se desenha uma linha reta, o filme amarra as peças de um quebra-cabeça em uma única linha formando um círculo muito bem montado, conectando cada peça da maneira a se encontrarem da forma mais feroz e imperceptível possível.
Assassinando o maniqueísmo e nos apresentando uma visão puramente baseada no prazer e nas falhas de seu fanatismo humano, seja ele mundano ou religioso, em nenhum deles na trama de O Diabo de Cada Dia, qualquer um de seus personagens pode ter um selo de “boa pessoa” fixamente atribuído a si em nenhum de seus dias.
O Diabo de Cada Dia (2020) | Netflix
NOTA: 8/10
- Gabriel Tessarini