O Mundo Depois de Nós (2023) - Crítica
Se não fosse o elenco famoso de Hollywood, poderia ser facilmente descrito como um documentário da vida real
O thriller apocalíptico lançado no streaming no ano de 2023, um ano inserido em um período quase sem descanso entre guerras em potencial e guerras já iniciadas, uma pandemia, caos climático assolando o globo, ápices de desinformação e o retorno massificado das disputas ideológicas, é capaz de nos apresentar, com uma variedade de ângulos e uma construção prolongada, porém não arrastada, um puro e marcante entretenimento de alta qualidade, além de uma reflexão informativa e crítica sobre onde nós viemos parar.
A produção da Netflix, O Mundo Depois de Nós, dirigida por Sam Esmail, é uma adaptação cinematográfica do livro homônimo escrito por Rumaan Alam. No título original em inglês, a obra é intitulada “Leave the World Behind”, que em uma tradução literal para o português seria algo como “deixe o mundo para trás”.
Antes mesmo de se iniciar toda a trama rodeando o apocalipse ou a suspeita dele, fica claro como o filme, representando o seu nome original, nos demonstra como as pessoas já deixaram o mundo para trás, priorizando tarefas, objetos, desejos e conquistas individuais, superficiais e prejudiciais em detrimento da estabilidade do único planeta onde temos condição de sobreviver e da sociedade que tanto lutamos para construir.
Protagonizado por um núcleo exímio de 7 artistas – que me arrisco dizer que representam, cada um, um dos 7 pecados capitais – incluindo Julia Roberts, que também produz o longa ao lado do ex-presidente americano e da ex-primeira-dama Barack e Michele Obama, Ethan Hawke, Mahershala Ali, Myha'la, Kevin Bacon e os jovens Farrah Mackenzie e Charlie Evans, a obra contém expressões, diálogos e atuações tão impactantes quanto críveis para um conjunto de famílias em uma situação de isolamento como a que vivenciam.
Com uma tensão que passa desde uma possível invasão à casa onde os protagonistas estão hospedados, pela manipulação dos envolvidos até mesmo a um eventual acontecimento de pilares provavelmente sobrenaturais e exotéricos, a obra exibe por diferentes pontos de vista, ângulos de pensamento e de posicionamento na câmera – um trabalho magistral de fotografia – como se dão os variados comportamentos humanos, em uma situação de perigo desconhecido, passando pela total apatia e pela exagerada empatia, tão perigosa quanto.
Os diferentes núcleos familiares obrigados a conviverem em um mesmo recluso local durante um contexto de ausência de comunicação com o mundo exterior e de dependência da tecnologia traz à tona os preconceitos e discriminações de cunho racial, econômico e ideológico fragilizando ainda mais a pouca relação de confiança que se precisaria ter em uma situação tão complexa e vaga de informações.
A narrativa conta com conversas profundas e regadas à emoção e informação na mesma intensidade que possui um silêncio estridente e falas das personagens que mostram a superficialidade do ser humano e a desconexão dele próprio com os outros de sua sociedade ou com conhecimentos minimamente úteis que não estejam ligados a crenças populares sem embasamento ou sem o acesso a um celular.
Chega a ser incômodo após terminar de assistir a obra, perceber como uma produção de tão boa qualidade, com artistas renomados, iluminação, fotografia e jogos de câmera que aumentam gradativamente a tensão e sabem, ao mesmo tempo, dar momentos de descanso para o espectador durante algo que é nada mais, nada menos do que uma ficção para lucrar para o estúdio e seus artistas, seja uma narrativa tão crível e próxima da realidade a ponto de você se entreter, mas também se criticar pelo quão rica a mente humana consegue ser e pelo quão rasa e hipócrita na mesma intensidade ela consegue esse feito.
O filme é uma crítica palpável e bem desenvolvida à diversos fatores que são a causa e a consequência de muitos problemas ligados à ação humana, muitos deles apresentados de modo explícito, enquanto outros são perceptíveis apenas de forma indireta para àqueles que buscam mais de um ponto de vista sobre a mesma narrativa e encenação.
No meio de uma praia paradisíaca, os protagonistas passam por entre pequenos montes de lixo de produtos industrializados espalhados na areia com tamanha naturalidade e descaso, enquanto olham com cobiça e luxúria os corpos de pessoas atraentes para si.
Durante uma visita à noite, tentando provar o quão confiável e sincero é, um protagonista apanha em segredo uma arma que tem guardada escondida em um móvel de fácil acesso em um cômodo da casa.
Em uma sala repleta de discos e música variada, a protagonista com nítido viés de preconceito racial escolhe uma música que julga de alta qualidade, a qual foi performada por artista negros, mostrando apreço pelo que fazem, mas não por quem são.
Em dado momento, um protagonista ferrenhamente assumido como patriota e batalhador por sua nação afirma que seu país fez tantos inimigos, que naquela situação que estão vivenciando, podem estar sendo atacados por todos eles ao mesmo tempo, e diz isso como uma aceitação tão cotidiana que denota a total falta de vigor e crença em princípios ou valores reais pelos quais vale a pena lutar.
Muitos fatores ligados ao “fim do mundo” por diferentes frentes ambientais, sociais, tecnológicas e políticas prendem a atenção de quem assiste a esse notável drama e suspense lançado no streaming.
A dualidade divergente do ser humano em se importar tão pouco com uma infinidade de tópicos que tangem à sobrevivência do planeta e da estabilidade da sociedade humana, e em dar ao mesmo tempo uma atenção tão bonita e preocupada com seus entes queridos é uma exibição nua e crua de como funciona a humanidade que se banha em guerras e também faz de tudo para evitá-las ou encerrá-las ao longo da história.
A família no longa cuja matriarca interpretada por Julia Roberts detém a desconfiança pelas pessoas que dizem ser as donas da casa, a apatia e a ira pela humanidade, pela forma como ela trata a si própria e aos recursos e figuras naturais que habitam o planeta, misturados ao conhecimento nítido e óbvio do que nós mesmo fazemos e do porquê fazemos, mas sem sequer se importar realmente com as consequências, é um contraste valioso com a preocupação da saúde e do bem-estar de sua própria família e das pessoas que eventualmente se tornam queridas para seu núcleo social.
E tão cômica e hipócrita é essa atenção à família que, ao mesmo tempo, releva a ansiedade e as angústias de seus próprios membros aflitos durante tal situação e jogados de escanteio para a tecnologia ou para a outros escapes em vez de serem tratados com carinho, como se pode perceber em como a família lida com a caçula interpretada por Farrah Mackenzie, um exemplo da juventude desviada pela e para a tecnologia e para a solidão com histórias de fantasia de um período que não representa mais a realidade moderna, se é que um dia realmente representou como visto pela obsessão com o seriado icônico Friends.
A mesma dualidade aplicada majoritariamente aplicada à Roberts pode ser facilmente identificada na elegância que pode descrever a atuação de Mahershala Ali. Um homem que, junto à sua filha, volta voluntariamente para o porão de sua própria casa em vez de ficar no quarto principal que é dado à família branca que retorna à estadia no local. Um homem que também é detentor de diversos conhecimentos que poderiam ser relacionados à causa daquela situação e poderiam ter iniciado certas proteções com antecedência, mas cujo zelo excessivo só os faz revelar quando é tarde demais.
O papel de Kevin Bacon, ainda que curto em tempo de tela, traz uma dualidade importante. O homem trabalhador, até então, honesto, empenhado e que contem valores rígidos de moral bem definida, buscando a autossobrevivência, à proteção de sua própria família e que, ainda assim, ao final vende parte de seus princípios para a fútil ganância, além de basear muitas de suas crenças em mais de uma falsa verdade não comprovada e discriminatória sobre quem pode estar por trás do caos que estão enfrentando.
Ethan Hawke traz com seu papel um típico exemplo da bondade e da inocência que beira à fraqueza, a indecisão e a estupidez. Um homem com arrependimentos, que tem tanta crença nas pessoas que sabota a si mesmo, sua família e a pessoas até desconhecidas pela sua própria falta de controle, pequenas mentiras para proteger a sua boa imagem, pela terceirização de ações para quem é mais competente do que ele e pela simples falta de crivo e de conhecimentos que não estejam exclusivamente e facilmente acessíveis a ele por meio da tecnologia.
Em dado momento de tensão da obra, uma frase curta, porém sincera denota muito do que o filme apresenta com maestria em diversos outros momentos. Um personagem afirma que não é nada mais que um homem inútil sem seu celular ou GPS, alguém que não sabe para onde ir ou como chegar lá sem ser por meio dos dispositivos nos quais depositamos todo o nosso conhecimento, discernimento e crença na verdade – uma salva de palmas também para a cena dos carros da Tesla.
Dentre tantas produções cinematográficas americanas modernas que exibem, de uma forma ou de outra, o fim do mundo, o ataque à governos por meios políticos e tecnológicos, ou até mesmo como famílias lidam com o iminente apocalipse por desastres naturais, como podemos ver exageradamente em “Duro de Matar 4.0” de 2017, “007 - Operação Skyfall” de 2012, “A Última Noite” de 2021, a atual obra “O Mundo Depois de Nós” é um filme sobre o quão rápida seria a queda da sociedade atual, que é ansiosa, dividia, frágil e dependente da tecnologia, se qualquer ataque minimamente bem orquestrado às fontes de informação e comunicação ocorresse nos maiores países do mundo.
Ultrapassando isso, o filme também é sobre como nós, seres humanos, em nossas inúmeras classes sociais, econômicas, ideológicas e religiosas chegamos aonde estamos, como lidamos com as pessoas de nossa própria família e as demais espalhadas pelo mundo, e como no meio de tudo isso, podemos ser tão criativos e complacentes em situações de necessidade, quase no mesmo nível que incongruentes e apáticos, fazendo ruir com tanta facilidade qualquer conquista atual, bem como as chances das vitórias futuras se não nos unirmos adequadamente antes que seja tarde demais e tenhamos que deixar esse complexo mundo para trás.
O Mundo depois de Nós (2023) | Netflix
NOTA: 8/10
- Gabriel Tessarini