Zona de Interesse (2023) - Crítica
A exata dualidade presente no Holocausto e nas guerras
O Holocausto aconteceu. A quantidade de provas que corroboram isso desde a década de 40 é quase inquantificável, sendo apenas menor que a quantidade dos envolvidos convictos por perpetrar esse crime.
Quase no mesmo volume, a quantidade de filmes e obras ficcionais que tentam retratar ou se inspirar nesse terrível período histórico para entreter o público é massiva.
Contudo, são poucas as obras cinematográficas sobre esse assunto que acabam se tornando realmente marcantes na mente das pessoas que as assistem, principalmente falando das obras que de fato se restringem a retratar a história de forma fidedigna, sem elucubrar com eventos ou personagens fictícios e distorcidos.
Se lhe for possível, conte nos dedos das mãos quantos filmes fidedignos sobre o Holocausto Judaico (ou Shoá) dentre todos os disponíveis até hoje, você assistiu e realmente te fizeram gravar na memória os fatos e reflexões que lhes propuseram.
Caso por algum motivo não tenha mais espaço para contar, dê um jeito de tentar incluir Zona de Interesse (2023) nessa lista.
Escrito e dirigido pelo inglês Jonathan Glazer, contando com uma qualidade magistral, dolorosa, mas ainda assim, respeitável, a obra é o oposto a muitas das produções que podemos encontrar, e por isso, se faz uma das mais marcantes.
Um crime só é um crime quando gera alguma vítima, e o filme de Glazer consegue demonstrar sobriamente, com outro enfoque, algo que são poucos os que se arriscam a mostrar com detalhes e de uma forma respeitosa: a vida de quem perpetrava esse crime e vivia naturalmente ao desdém de suas vítimas.
Abordando durante quase 2 horas de modo próximo ao biográfico o cotidiano do real oficial alemão responsável por comandar o campo de concentração e extermínio de Auschwitz, Rudolf Höss, e sua família, a obra tem a surpreendente e assustadora capacidade de mostrar os dois lados desse período simultaneamente durante toda a produção, sem deixar de acompanhar como centro a vida doméstica da família Höss e a frivolidade de seus serviços vistos como meramente burocráticos.
Höss foi um dos principais responsáveis pelos testes e aplicações de métodos que tornassem o extermínio sistemático dos seres humano feitos prisioneiros nos campos mais “eficiente” em sua linha de produção em massa de morte e sofrimento.
Como um oficial de renome cujo trabalho deveria ser detalhadamente inspecionado e gerenciado com maestria diária, Höss e sua família, incluindo a esposa e os 5 jovens filhos, foram alojados no que foi descrito sem nenhum exagero por uma das personagens do filme como um “jardim paradisíaco”.
A família morava realmente em uma residência elegante, em uma área verde, aconchegante, com direito à piscina e muitas flores, confortável para todos e com alguns luxos que agradam só de olhar.
O contraste presente em absolutamente tudo do que o filme apresenta, claro que também está presente nessa residência.
O local ficava diretamente ao lado, a poucos metros, dos muros, cercas de arame farpado, torres de vigia e guardas armados do complexo do campo de concentração e extermínio de Auschwitz, um dos principais campos da rede de genocídio construída pelo regime nazista, onde se chegou a assassinar em um único local mais de 1 milhão de pessoas, dentre as 6 milhões de judeus vítimas do Holocausto.
O comandante precisava morar perto do local para poder executar seus trabalhos diários.
O cotidiano da família, lidando com aquela situação de um modo grotescamente apático ao que ocorria do outro lado do muro, mesmo sabendo exatamente o que era, é um dos vários choques que a obra causa em quem a assiste pela sinceridade e naturalidade como a aborda.
A produção de Glazer não exalta de modo algum os criminosos convictos. A condução do roteiro e de sua exibição é emocionante justamente por não reforçar emoções de um modo explícito, e sim a pura fatualidade dos eventos — salvo duas ou três exceções — em um ritmo neutro, em parte quase silencioso e até frívolo, tal qual a vivência dos apoiadores daqueles anos de crimes e genocídio.
É essa sobriedade, acompanhada de toda a inteligência da produção, que provoca a angústia, a reflexão e as emoções genuínas e naturais do espectador pelo simples fato de o filme exibir as situações como elas realmente ocorriam, o que por sua vez é o “impensável” que julgamos.
O filme se objetiva a retratar sem ficção, a realidade doméstica quase que “mágica” vivida por essa família em sua bolha paradisíaca, em que muitos outros queriam viver, ignorando todo o horror da situação externa que eles apoiavam na região onde se executavam os planos centrais do Holocausto, enquanto milhares de outras pessoas viviam o exato e terrível oposto logo ao lado.
O elenco, carregado principalmente por Christian Friedel que interpreta Rudolf, e Sandra Hüller que dá vida à Hedwig, esposa do comandante, traz exatamente o que é preciso para demonstrar o objetivo do roteiro: a vida normal de uma família, ao menos sob as condições que aquele grupo institui como normal durante tal período.
Temos casais conversando sobre planos de viagens de férias, jantando e conversando sobre o dia um do outro. Temos cenas dos filhos brincando e brigando entre si, visitas de parentes e amigos em um espaço iluminado e alegre, e discussões sobre ambições profissionais, o crescimento do status e das condições da família diante da sociedade.
A maneira como Christian traz um marido e pai de família que às vezes trabalha em um processo burocrático dentro do escritório em casa, e em outras supervisiona ativamente a agressão, clausura, trabalhos forçados, gaseificação e a aniquilação de outros seres humanos, demonstra a naturalidade daquela vida como fosse qualquer outro homem em um emprego comum.
Höss era uma figura militar com feitos admirados pelo regime nazista, mas como em qualquer indústria, era mais uma dentre as várias engrenagens da máquina, podendo ser realocado de trabalho, tendo que se relacionar com vários outros colegas igualmente culpados por seus feitos terríveis, e tendo que negociar elogios com seus chefes com normalidade.
A transparência como Sandra, interpretando Hedwig, vive como a matriarca da casa, organizando para que tudo esteja perfeito em sua moradia, para que seus filhos se comportem e tenham um bom futuro, aproveitando dos ganhos de seu marido e dos itens tomados dos prisioneiros e assassinados, fofocando com suas amigas sobre a condição das outras pessoas e proferindo injúrias e ameaças de morte reais e terríveis aos empregados que não desempenhavam bem os seus trabalhos — muito dos empregados eram pessoas polonesas colocadas sob trabalhos forçados pelos invasores do regime nazista — demonstra mais fortemente as emoções e as ideologias que faziam parte do cotidiano dessas pessoas, longe de qualquer necessidade de violência física ou barbárie caricata que elas próprias teriam que realizar com as próprias mãos.
Hannah Arendt foi uma filósofa alemã de origem judaica que assistiu ao julgamento de Adolf Eichmann, outra figura importante na estratégia de genocídio implementada durante o regime nazista. Com seus estudos, ela descreve em um de seus livros o que foi denominado como a “banalidade do mal”. A naturalidade como pessoas comuns, em suas simples rotinas de trabalho podem perpetrar crimes hediondos, sem serem necessariamente aparentes monstros violentos.
O mal pode não ser obrigatoriamente icônico, mas sim banal, algo que se torna uma prática costumeira, como os trabalhos “burocráticos” dos oficiais que ficavam sentados em suas mesas, escrevendo relatórios e contando quantas milhares pessoas de um país invadido seriam enviadas para qual campo e como exatamente seria a melhor forma de assassiná-las de uma só vez.
Como demonstrada no filme, a interpretação da esposa do comandante, Hedwig, exprime exatamente este feito mesmo por pessoas que não tem necessariamente um poder político ou militar. Qualquer pessoa administrando sua própria casa pode viver com seus preconceitos e seu extremismo apoiando feitos maquiavélicos aos outros.
Absolutamente tudo no filme evoca com perfeição esse contraste da família e dos apoiadores em relação às pessoas vítimas de seus crimes. Seja dentro dos campos, que nunca são mostrados diretamente, ou nos poucos momentos de destaque da atuação desses prisioneiros que eram postos para trabalhar na área da casa da família.
Com o silêncio que a família vivia em sua casa pitoresca em uma região arborizada, de fundo ao som de batidas e tiros por trás dos muros dos campos, ou todas as demais situações, Zona de Interesse alcança o seu objetivo em mostrar com sobriedade essa dualidade tão extrema e ao mesmo tempo invisível para muitos.
Literalmente a cada cena, sem exceção, somos apresentados de uma forma ou de outra ao cotidiano dos oficiais, soldados, perpetradores e espectadores dos crimes de guerra e do genocídio, ao mesmo tempo que à realidade enfrentada pelas vítimas, mostrando que elas estavam lá e pelo que elas passavam, mas sem adentrar em seu enfoque.
Pela fotografia impecável que viabiliza esse contraste visual das duas realidades, pela arquitetura dos cenários, pelos sons de fundo sempre presentes, pela palheta de cores, pelo zoom entre as cenas, pelo conteúdo dos discursos proferidos, pela iluminação e até pela transição temporal, o espectador é imerso no que pode ser considerado a observação de uma aula ou uma cerimônia de dissecação do evento.
Nunca estamos com os personagens. A produção nos respeita a ponto de não nos colocar no meio das pessoas e dos acontecimentos em um período tão hediondo.
A forma como os ângulos, inclinações e posicionamentos das câmeras capturam os variados momentos dos personagens e dos locais onde estão nos permitem fazer uma investigação dos fragmentos e das nuances do que ocorreu sem nos afundar no meio do mesmo ponto de vista que o dos criminosos.
Nos tornamos detetives, sempre olhando por cima, pelos lados, pela frente e por ângulos paralelos, mas nunca sob o mesmo olhar que tinham os criminosos.
De forma similar e devo dizer até superior a um detalhe que o diretor Bong Joon-ho construiu muito bem no filme Parasita (2019), o filme de Glazer é genial em apresentar, com sutileza, mas constante permanência, a divisão visual entre os indivíduos, suas qualidades e condições de vida, e suas ideologias.
Cada objeto presente nas cenas, a distância entre os personagens, a disposição geográfica das paisagens naturais ou a forma como esses objetos e personagens se encontram no plano traçam uma visível linha dividindo o que o filme mostra, o que ele não mostra explicitamente e o que circundava nas mentes das pessoas naquela época. O trabalho da sonoplastia consegue o mesmo efeito, de modo impecável.
E como estamos falando de contrastes, seria difícil não abordar o contraste que a obra tem com outras obras do mercado.
Em contraste ao clássico A Lista de Schindler (1993) de Steven Spielberg, Zona de Interesse de Jonathan Glazer é capaz de se posicionar de modo original no mesmo patamar de qualidade, mas fazendo exatamente o oposto que o outro filme também premiado realizou.
Em Zona de Interesse, não temos uma fotografia em preto e branco ou músicas dramáticas ao fundo. O cru som da realidade daqueles espaços impera com o seu silêncio e os sussurros que ecoavam a partir dos gritos de dor.
Não temos explicações históricas. Não há textos ou falas que introduzam, como em uma aula, o espectador ao contexto factual e histórico que é aquela situação, legendas que identifiquem quem são as pessoas em cena, como foi a origem da guerra ou quantas foram as vítimas.
O filme é dirigido para aqueles que sabem minimamente que período foi aquele e o que ocorreu.
Não são vistos os corpos das vítimas ou mesmo as ações que eram cometidas contra elas. Não há a visualização dos tiroteios, da violência ou da vivência interna das pessoas aprisionadas nos campos.
Não são apresentadas as poucas, mas firmes bondades que os inocentes ou seus protetores realizam entre si, ao menos não da forma explícita em primeiro plano como ocorre ao longo do restante da produção.
Tirando um par de cenas rápidas e seus efeitos de metalinguagem introduzida sobre a cinematografia, Zona de Interesse retrata para o público imagens e sons que buscam a pura realidade física, como se câmeras tivessem sido posicionadas naqueles espaços da casa de Höss e dos demais locais por onde ele passava durante a época em que seu núcleo de pessoas observadas vivia de verdade.
Após a introdução, de forma legendada, de um poema escrito por Joseph Wulf, real sobrevivente do campo de Auschwitz, durante uma cena humilde, mas com seu encanto, a cena final da obra, em seus últimos minutos, talvez seja o único momento em que uma homenagem ao povo judeu é proferida explicitamente.
Todo o restante do que acompanhamos no filme não esconde de nenhuma maneira os horrores cometidos contra os judeus e os povos perseguidos durante o Holocausto, e nem a repulsa que os membros do partido nazista sentiam contra eles.
Contudo, diferentemente de uma obra cujo toda a sua duração declara de forma direta e simplificada um respeito ou uma forma de homenagem às vítimas e aos sobreviventes, Zona de Interesse e seu tom frio é um aterrador aviso cujo apenas a sua completa reflexão permite, de fato, uma identificação e conclusão sobre todos os alertas e mensagens.
Como a maldade em níveis tão profanos pode se instalar diante dos grupos de seres humanos, passar a ser relevada e tradada como corriqueira e banal por aqueles que se beneficiam dela ou que ao menos não são seus alvos, consentindo com naturalidade.
Uma lição tão clara como água, sobre o que os seres humanos foram capazes de cometer uns contra os outros em muitos períodos, e ainda cometem de diferentes maneiras ao redor do mundo todo hoje mesmo, seja em lugares onde estejam acontecendo guerras ou não.
As divisões, os contrastes as linhas e os muros presentes na obra, mesmo com toda a sua proximidade física, tal como o comportamento e os pensamentos das pessoas do lado deles, ainda está em certos níveis no cotidiano de muitos grupos por aí.
Enquanto você está lendo esse texto, olha ou se dá conta do horror que uma pessoa ou família inteira pode estar passando agora mesmo no bairro ao lado do seu, sofrendo de fome, violência doméstica ou preconceito racial?
Enquanto um empresário bebe o seu café expresso no escritório em um prédio de luxo, e quanto às famílias que estão sendo ignoradas do outro lado da rua em uma região de periferia sem saneamento básico, infraestrutura adequada de energia elétrica, mobilidade ou moradia?
E quanto às pessoas que trabalham de forma irregular, sem direitos trabalhistas, durante horas em uma fábrica de produtos químicos, será que elas estão a par do “jardim paradisíaco” ao lado de onde trabalham, dentro da casa de alguma família com mais condições financeiras, a que elas poderiam ter alguma política que incentivasse os seus direitos para que pudessem conquistar o mesmo benefício ou acesso?
A ignorância não é necessariamente uma baixa capacidade intelectual. Ignorar é muitas vezes um ativo e premeditado ato de escolher não dar atenção ao que não te agrada em particular ou te afeta diretamente, olhando e acreditando assim, apenas no que deseja.
Zona de Interesse é uma obra que evoca tudo isso. As divisões feitas pelos seres humanos, os contrastes do que eles vivem ou são impostos a viver, e o que eles escolhem ignorar para viver apenas os seus próprios sonhos em oposição a quem eles querem dar por invisíveis em seu cotidiano.
Zona de Interesse (2023) | A24
NOTA: 9/10
- Gabriel Tessarini